O conflito invisível entre Paixão e Amor
- Ana Mafalda Ferreira
- 3 de out.
- 5 min de leitura

Quando um casal está nos primeiros meses de relação, há intensidade no olhar, urgência no toque, desejo quase compulsivo. Essa fase, muitas vezes chamada de “lua-de-mel”, parece prometer uma chama eterna.
Mas, com o tempo, muitos relatam que essa intensidade diminui. Surge uma sensação de “já não sinto o mesmo”, de “o fogo apagou”. E então, vem o medo: será que o amor acabou?
A resposta não é simples. A ciência contemporânea mostra que esse movimento, o da paixão intensa para algo mais calmo, pode ser uma transformação vital, não um fracasso. Entender por que a paixão arrefece, como isso afeta a ligação a dois e o que fazer com essa mudança pode salvar relações e tornar o amor mais profundo, sustentável e significativo.
Por que a paixão arrefece? O que dizem as pesquisas
As fases iniciais do amor envolvem alta atividade nas zonas de recompensa do cérebro (circuitos dopaminérgicos). O novo parceiro, o toque, o mistério, tudo estimula o cérebro a libertar dopamina, proporcionando excitação e desejo. Com o tempo, há habituação neuronal: a exposição contínua ao mesmo estímulo reduz a intensidade do efeito. Ou seja, o “novo” deixa de ser novo, e o cérebro encontra menos “surpresa” a cada repetição.
Esse mecanismo biológico é um processo natural do sistema nervoso para filtrar sinais constantes e focar no que muda.
A “adaptação hedónica” ou “hedonic adaptation” descreve como redes neurais ajustam-se a estímulos repetidos, o que antes nos encantava passa a ser visual de fundo. A familiaridade gera previsibilidade, o que pode reduzir o mistério e o suspense que geravam excitação.
Relações humanas são complexas. A pressão para manter sempre o “novo” é irreal. o romantismo exige renovação constante ou pode desvanecer.
Muitos modelos clássicos de amor (como Berscheid & Hatfield, Sternberg) postulam que o amor romântico intenso tende a decrescer e evoluir para formas mais calmas de afeto, intuição e compromisso (amor companheiro).
Um meta-estudo de 25 investigações encontrou que o amor romântico (sem obsessão) se associa à satisfação conjugal tanto em relacionamentos de curto como de longo prazo. Embora os níveis de excitação tendam a estabilizar em valores mais baixos ao longo do tempo.
Alguns casais mantêm níveis intensos de amor e desejo por décadas: estudos de Bianca Acevedo reportam que cerca de 13% de casais de longo prazo mantêm sentimentos intensos com “borboletas” persistentes.
Uma pesquisa recente (Bhargava, 2023) examinou como as pessoas relatam experiências de amor ao longo do tempo e constatou que elementos emocionais fluem de modo dinâmico, com altos e baixos.
💞 O vínculo que transforma Paixão e Amor: intimidade, compromisso e renovação
Intimidade ativa: o elo entre proximidade e desejo
Um estudo com casais fez um diário de 14 dias, avaliando como mudanças na intimidade se relacionavam com níveis de paixão. Resultado: quando a intimidade aumentava, a paixão também subia, para ambos os parceiros.
Isso confirma algo que já intuíamos: amor e paixão dançam juntos, não são polos distintos e rígidos. O que nutre um também pode reacender o outro. Ou seja: mais proximidade emocional pode ser a base do desejo.
Teoria da vinculação: como nossos modelos internos influenciam o desvanecer
A teoria da vinculação adulta sustenta que os padrões de relacionamento que trazemos da infância (seguro, ansioso, evitativo) moldam como vivemos intimidade, conflito e conexão.
Em situações de stress, quem tem apego inseguro tende a reagir com mais desconfiança ou afastamento, o que pode enfraquecer a capacidade de reinvestir no vínculo.
Novas abordagens teóricas, como a proposta de codificação preditiva do apego, tentam vincular processos neurais e modelos de apego, sugerindo que aprendemos a prever emoções internas e externas e a responder às mesmas de modo adaptativo (ou desadaptativo).
O modelo VSA e a adaptação relacional
O modelo Vulnerability-Stress-Adaptation (VSA) de Karney e Bradbury propõe que a qualidade conjugal é influenciada por:
1. vulnerabilidades na vida (histórias pessoais, traumas, medos),
2. eventos de stress (crises, mudanças de vida),
3. processos adaptativos (forma como o casal lida com conflitos, comunicação, reparos).
Quando a paixão inicial desvanece, podem emergir vulnerabilidades (insegurança, ressentimentos, expectativas não verbalizadas). Se o casal não tiver estratégias adaptativas saudáveis (diálogo, renovação, curiosidade mútua), a transição pode tornar-se uma crise.
🌱 Transformar a calmia em renovação: práticas e intervenções

Aqui entram os pontos críticos onde teoria encontra prática.
Reconhecer a mudança como parte do processo
Evite julgar o arrefecimento como um “erro” da relação ou um sinal de falência. Trata-se de transição.
Nomear a mudança: comunicar ao parceiro “estou a sentir que algo mudou entre nós, não que acabou” abre espaço para intervenção compartilhada.
Introduzir novidade e desafio conjunto
Segundo o modelo de “self-expansion” (Aron & Aron), casais que se envolvem em atividades novas, estimulantes e incertas juntos reiniciam o sistema dopaminérgico e fortalecem a ligação.
Exemplos práticos: aprender algo novo juntos (dança, viagens, projetos), praticar esportes desconhecidos, mudar rotinas, surpresas intencionais.
O “intervalo planeado”, pequenas ausências, encontros inesperados. Pode funcionar como “interrupção emocional” que reativa a novidade latente (modelo de “interruption” de Berscheid).
Cultivar intimidade emocional e comunicação vulnerável
Diálogos regulares: compartilhar desejos, medos e necessidades sem acusar.
Exercício clínico: cada parceiro fala por 5 minutos sem interrupção, o outro ouve (reflete o que ouviu) e depois trocam.
Reparos emocionais: quando a comunicação falha, reconhecer, pedir desculpa e restabelecer conexão. A ciência de casais reforça que reparos bem-sucedidos são mais decisivos que conflito zero.
Reguladores cognitivos: reavaliações e atenção seletiva
Pesquisas da psicóloga Sandra Langeslag mostram que podemos escolher (via reavaliação cognitiva) focar nos aspectos positivos do parceiro/relacionamento, aumentando o sentimento de ligação e satisfação.
Em vez de ruminar o que mudou (“já não me sinto apaixonado”), exercita relembrar momentos de conexão, crescimento mútuo, propósito compartilhado.
Exercício prático: ao longo de uma semana, dedique 5 minutos por dia para anotar uma ou duas qualidades ou gestos pequenos do outro que despertam admiração ou intimidade.
Procurar suporte terapêutico quando necessário
Terapia de casais baseada em emoções (EFT), terapia focada em vinculação ou modelos integrativos podem intervir nas dinâmicas que bloquearam a renovação.
Um olhar externo ajuda a identificar padrões inconscientes (reação ansiosa, evasiva, silenciamento).
Em casos de feridas profundas (infidelidade, trauma, desapego emocional), supervisão profissional é vital.

🎯 Perspectiva clínica e implicações para intervenção
O papel da narrativa relacional do Paixão e Amor
Parte da transformação é reescrever a história que o casal conta a si mesmo. Em vez de “amor que morreu”, narrar “amor que evoluiu”. Esse gesto simbólico reorienta o sistema emocional coletivo.
Agora é manter curiosidade
Quando a intensidade diminui, muitos interpretam como desinteresse. A intervenção relacional sugere: curiosidade é antídoto. Fazer perguntas: “o que mudou?”, “O que te emociona agora?” e mantém o campo relacional vivo.
Microssinais de presença
Em contextos de vida com muito ruído e "pressa", o desejo pode ser vencido pela fadiga, pelo estresse, pelas rotinas. Agendar e concordar com microssinais (olhares, toque breve, agradecimento) reconecta o sistema afetivo de maneira sutil, mas significativa.
Prevenção: equipar para a transição
No início da relação, já se deve respeitar que a paixão será alterada. Preparar-se com consciência relacional (comunicação, pactos sobre ciclos, expectativas compartilhadas) reduz o choque quando o pico inicial diminuir.
✅ O arco-íris não dura para sempre, mas o amor pode admirar mudança
A paixão plena, com “borboletas” e urgência, tem seu papel evolutivo: aproximar, conquistar, ativar mecanismos de vínculo. Mas sua diminuição não indica fim da relação, indica passagem. É o momento de transformar o olhar para outra forma de intensidade: mais calmo, profundo, mas ainda vivo.
Quando aprendemos que o amor maduro transforma-se, abrimos espaço para presença consciente, renovação relacional e uma história compartilhada mais verdadeira.
Já conheces o nosso guia para casais atarefados?
Envia-nos uma mensagem e faremos chegar o guia à tua caixa de email :)
Gostaste? Segue-nos nas nossas redes, para mais conteúdo.
Referências:








Comentários